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Brasil pode liberar venda de carros com motor a diesel
Baixa qualidade do diesel é questionada por ambientalistas e montadoras.
Priscila Dal Poggetto
Enquanto o Ministério do Meio Ambiente aumenta as restrições para emissões de poluentes por veículos leves (como carros, utilitários, furgões e picapes), tramita no Senado um projeto para permitir a venda de carros de passeio movidos a diesel. O combustível é mais poluente que a gasolina e o álcool, porém faz mais quilômetros por litro. Isso o tornaria uma alternativa mais “ecológica”, segundo o autor da proposta, o senador Gerson Camata (PMDB – ES). A ideia é, no entanto, rejeitada por entidades ambientais e montadoras.
Na última quarta-feira (2), o Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama) aprovou a sexta fase do Programa de Controle da Poluição do Ar por Veículos Automotores (Proconve), que estabelece novos limites de emissões de poluentes para automóveis leves movidos a diesel e a gasolina. A determinação entra em vigor para os veículos a diesel em 2013, e em 2014 para os movidos a gasolina.
O projeto de lei de Camata foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado em julho e, agora, passa por avaliação na Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) em caráter terminativo. Isso significa que, caso não haja nenhum recurso contrário por parte dos senadores, o projeto irá para a Câmara, sem necessidade de ser votado no plenário do Senado. Se os deputados aprovarem, a lei irá para sanção presidencial.
A proposta visa colocar fim a uma lei criada em 1976 que proíbe a venda desse tipo de veículo. A medida foi tomada durante a crise do petróleo, quando o Brasil tentava diminuir a importação de petróleo e derivados e investia no projeto Pró-álcool. Desde então, apenas veículos comerciais (caminhões, ônibus, caminhonetes, jipes e alguns SUVs) podem circular com o combustível.
Para o senador Gerson Camata, a mudança seria uma forma de “democratizar o uso do combustível no Brasil”. “Hoje, se você é rico, você pode comprar um carro importado que usa diesel e aproveitar os benefícios de rodar mais quilômetros por menos litros. Mas se você é uma pessoa pobre ou de classe média, que quer comprar um carro de passeio 1.0, por exemplo, não pode”, critica.
A proporção da polêmica para liberar o uso do combustível hoje é tão grande quanto a da época quando foi proibido. O senador Delcídio Amaral (PT – MS), que é o relator responsável pelo projeto na CAE, afirma que tem sofrido “pressão por todos os lados”. “Já recebi dezenas de cartas e emissários querendo discutir a proposta”, afirmou ele ao G1.
Primeiro a levantar bandeira contra a liberação do combustível, o Movimento Nossa São Paulo aponta como problema da circulação em grande escala dos veículos a diesel a baixa qualidade do óleo no país, com alta concentração de enxofre. “É preciso levar a sério a questão da saúde pública. O médico Paulo Saldiva, do Laboratório de Poluição da USP, apresentou um estudo que mostra que das, 110 mortes por causas naturais na região metropolitana, de 12 a 14 são em consequência do diesel”, argumenta um dos idealizadores da ONG, Oded Grajew.
Atualmente, a concentração de enxofre no diesel comercializado nas regiões metropolitanas do país é de 500 ppm (partes por milhão). Nas capitais Belém, Fortaleza, Recife, São Paulo, Rio de Janeiro e Curitiba há diesel com 50 ppm. Porém, nas cidades afastadas do perímetro das capitais, o diesel vendido chega a ter 1.800 ppm de enxofre. Ao levar em conta que o óleo diesel que circula na Europa possui 10 ppm de enxofre, o Brasil está bem longe de níveis considerados saudáveis pelas exigentes leis ambientais europeias. “Temos que ter diesel como na Europa”, reforça Grajew.
A Petrobras foi obrigada a substituir todo o diesel metropolitano por diesel com 50 ppm até 1º de janeiro de 2012. E, consequentemente, melhorar a qualidade do diesel distribuído no resto do país, para 500 ppm. Assim, gradativamente, o diesel com 1.800 ppm só ficará restrito a tratores e máquinas agrícolas. A partir da redução para 50 ppm, a próxima etapa será passar o nível de enxofre para 10 ppm, a ser concluída em 1º de janeiro de 2013.
Para chegar à qualidade literalmente dinamarquesa de óleo diesel, o trabalho terá de ser feito entre montadoras — que desenvolve a tecnologia de motores —, governo, que por meio da Agência Nacional do Petróleo Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) define as características do combustível, e do Ibama, que fiscaliza e estabelece o Programa de Controle da Poluição do Ar por Veículos Automotores (Proconve) , baseado nas legislações europeias.
ANP atrasou em um ano a especificação do novo diesel (Foto: TV Globo/Reprodução)
Apesar da sinalização de melhoria, a dúvida é em relação ao cumprimento dessas determinações. A sexta fase do Proconve, aprovada nesta semana, deveria ter entrado em vigor no dia 1º de janeiro deste ano. Entretanto, a ANP atrasou em um ano a especificação do combustível e comprometeu todo o cronograma de testes de motores e produção do diesel. Por esse motivo, novas datas foram estabelecidas e agora os motores a diesel menos poluentes só devem ser realidade em 2013 (um ano antes dos carros a gasolina).
Agora, quem corre atrás das mudanças são as refinarias e distribuidoras. O Sindicato das Distribuidoras Regionais Brasileiras de Combustíveis (Brasilcom) afirma que as bases das distribuidoras regionais terão necessidade de se adequar para operar com o diesel S10 (10 ppm de enxofre) e S50 (50 ppm). Segundo o diretor executivo do sindicato, Sebastião Lara, até 2012 elas já estarão prontas para a nova regra.
Nova tecnologia precisa do “novo” diesel
A preocupação com a baixa qualidade do diesel vendido no país não é exclusiva dos movimentos em defesa do meio-ambiente e da saúde pública. A indústria também precisa do “novo” diesel. A questão é que as novas tecnologias, que garantem baixa emissão, não aceitam diesel com alto teor de enxofre.
“O problema do enxofre é que ele contamina certas peças. Do processo de queima do diesel, sai CO₂e água, e com o enxofre saem ácidos como o sulfúrico, que acaba por estragar válvulas, bico injetores e catalisadores, peças que garantem a baixa emissão de poluentes”, explica o membro do comitê técnico de tecnologia diesel da SAE Brasil, Vicente Pimenta. “Para atender às novas legislações, os sistemas foram todos desenhados para combustíveis com menos enxofre. Se a concentração de enxofre for alta, ele impede que o catalisador funcione”, reforça Pimenta.
Por esse motivo, o chefe da engenharia da Ford para a América do Sul, Milton Lubraico, alerta para a liberação prematura da venda do carro a diesel. “Se o governo liberar agora, sem a melhora da qualidade do diesel, haverá um grande impacto nos veículos em termos de durabilidade e de auto-suficiência”, alerta Lubraico.
Bandeira europeia
Embora o país esteja três décadas atrasado em relação à evolução do combustível, encarar o diesel como o grande vilão das emissões é um erro. Tanto é que as características de baixa emissão, especialmente de CO₂, levaram a Europa a adotar tais carros como alternativa ecológica para a mobilidade urbana.
Aliás, a gasolina possui 1.000 ppm de enxofre em sua composição. Segundo Vicente Pimenta, o que faz a diferença entre os dois combustíveis é o material particulado emitido pelos veículos a diesel, ou seja, a fumaça preta que é vista saindo dos escapamentos.
Pimenta explica que os veículos a gasolina emitem cinco dos sete tipos nocivos de gases provenientes da combustão de motores. Por outro lado, os propulsores a diesel emitem apenas dois.
“Desses gases, o único visível é o material particulado existente no diesel, mas nos carros novos não há mais aquela fumaça que se vê em caminhões e ônibus em circulação, porque possuem injeção eletrônica e tratamento dos gases de escape”, defende Pimenta.
Além disso, automóveis a gasolina consomem, em média, 36% mais combustível que um modelo similar a diesel (com injeção direta de combustível e controle eletrônico). Com álcool esse número sobe para 58%. Já os carros convertidos para GNV apresentam consumo médio 37% maior quando comparados com os carros a diesel.
Em defesa da liberação dos carros a diesel, a Sociedade de Engenheiros da Mobilidade (SAE Brasil) também aposta nesses veículos como mais uma alternativa ecológica ao brasileiro e destaca o uso do biodiesel como complemento.
“O ciclo diesel traz mais energia do consumo, então há redução bastante grande de CO₂. Assim, se o Brasil combinar diesel com combustível renovável, que é o caso do biodiesel, o benefício será ampliado”, diz o coordenador do comitê de tecnologia diesel da SAE Brasil, Rubens Avanzini. Atualmente, o Brasil utiliza o B4 — diesel com 4% de biodiesel em sua mistura. Para o ano que vem, o país já prevê o B5 (combinação com 5% de biodiesel).
É isso que também acredita o senador Gerson Camata. “Se você levar em conta a emissão de CO₂por quilômetro percorrido, o óleo diesel é menos poluente que a gasolina”, afirma.
Aliás, o apelo ao biodiesel é um dos motivos que atraem o governo para a retomada dos carros a diesel. “Existem várias iniciativas nesse sentido em andamento como, por exemplo, o diesel de cana-de-açúcar”, acrescenta Avanzini. Mas o próprio diesel também tem seu lado político. O governo já anunciou que será autossuficiente na produção do combustível a partir de 2011.
O aumento da produção já é refletido nos balanços da ANP. Neste ano, o Brasil exportou 426.765 m³ de óleo diesel contra uma importação de 911.523 m³. Em relação a 2008, o país importou até maio menos 63,1% do combustível e exportou mais 95%.
Nem tão contente anda a Petrobras, que terá de investir nas refinarias para se adequar ao novo diesel. O G1 entrou em contato com a empresa estatal, no entanto, o departamento de comunicação afirmou que a Petrobras só se manifestará sobre o assunto, caso a liberação dos carros a diesel for decretada.
Mas o senador Delcídio Amaral adiantou que a estatal pediu para “discutir melhor” o projeto. “A Petrobras entrou em contato comigo por que quer reavaliar, discutir melhor, essa proposta”, afirma.
A retomada das vendas de carros a diesel está longe de significar uma ameaça ao mercado de automóveis flex. Pelo contrário. Primeiramente, porque o preço de um carro a diesel é mais alto, pois a tecnologia é mais cara. Segundo, porque a indústria enxerga a possível mudança como o aumento das opções de escolha para o consumidor.
“Não acredito que a venda de carros a diesel atingirá uma escala tão grande quanto a de carros flex, será na verdade mais uma opção. E é o que se tem visto no mundo todo. Não existe uma matriz energética do futuro, o consumidor que irá escolher se prefere flex, elétrico, híbrido, diesel etc.”, afirma o chefe da engenharia da Ford para a América do Sul.
Outro motivo é um possível aumento do preço do combustível. O baixo valor do diesel só é mantido por subsídios do governo. Se a escala de distribuição aumentar, isso poderá representar um reajuste de preços. “Pode ser que o subsídio do diesel diminua com o aumento da demanda”, analisa Milton Lubraico.
Para os especialistas, os carros a diesel terão forte apelo para quem utiliza o carro como instrumento de trabalho, devido à economia de combustível. A vantagem, no caso, seria dos taxistas.
Para quem quer ter acesso a carros mais modernos e com maior torque (característica desse tipo de veículo), também seria uma opção.E isso sem a necessidade de importar um modelo. Várias montadoras fabricam motores a diesel no Brasil, com foco no mercado externo. Entre os principais clientes desses produtos estão Europa e vizinhos como Argentina, Uruguai e Chile.
No dia 27 de outubro, a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) promoverá um encontro entre representantes de montadoras, fabricantes de autopeças, SAE Brasil, Petrobras, entre outros. Ainda há muito para esclarecer, regras a determinar e pontos a se cumprir sobre o polêmico assunto. Mas o debate já é um passo a favor de regulamentações e mudanças, ao menos, do ponto de vista ambiental.
O senador Delcídio Amaral acredita que a decisão ainda deve demorar mais um pouco. “É um projeto meritório, mas que merece uma discussão mais profunda. A Petrobras quer discutir melhor isso, o Ministério das Minas e Energia também. Acho bem razoável conversar mais sobre isso antes de tomarmos qualquer decisão”, afirma.
No curto prazo, o consumidor fica com a certeza de que a discussão sobre a liberação do combustível apenas começou. Porém, se a lei for aprovada, a opinião pública terá forte peso sobre o sucesso ou não da investida, a exemplo do que aconteceu com os carros flex.
*Colaborou Marília Juste